sábado, 29 de fevereiro de 2020

Textos de/para reflexão


Textos de/para reflexão
               

Naquele instante

Ferido e caído, sem forças pra levantar; apenas tentando continuar; sem o menor resíduo de resistência; sem a menor possibilidade de suportar sobre si mais um grama; desfalecido, entregue ao momento desencadeador do concreto e do abstrato; entre o sólido e o abrir as asas para o desconhecido; entre o inspirar e o não liberar a expiração; entre o continuar e a terminação; completamente entregue ao minúsculo instante da extração do que se tritura para liberar o sumo; entre a filtração do insubstancial e a substância; no momento último do fim e o iniciar da devolução; no escapar do ajuntamento de uma fenda; bem aí, logo aí, a vida desvia o olhar e alheia-se à cruciação.
Então, o que pode nos aliviar?
Alguém responde: a esperança de que Ele nos volte Sua face e mais uma vez diga: “num ímpeto de ira, por um momento eu escondi de você o meu rosto; agora, com amor eterno, volto a me compadecer de você” (Is 54:8).
                                                                                                                       
                    
        
Senão ...

  O que diz o espinho quando fura a mão que se direciona à flor?
 O que quer a fonte com a insistência de vencer obstáculos até ser envolvida pelo abraço do mar?
  O que custa à semente a missão de produzir nova vida?
  O que faz alguém sacrificar sua identidade para que os outros se identifiquem?
  O que faz um pai sombrear seus sonhos para que a vida seja refletida na realização de seus filhos? E a mãe, que logo após o sacrifício do parto, se reconstitui aconchegando seu recém-nascido?
   O que moveu o Criador a nos criar à Sua imagem e semelhança?
   O que nos deixa em ruínas quando somos separados de alguém que nos faz bem?
   O que diz o último suspiro quando o corpo decide não querer continuar?
   O que diz o lamento na hora do aceno de um adeus?
   O que diz o abraço na hora do tão esperado encontro?
   O que nos revela a ansiosa espera por nossa outra metade?
   O que é o ato de misericórdia, de compaixão, de ser solidário ou de dar a mão?
   O que é capaz de reerguer alguém depois da decepção?
   O que é o vínculo que faz unir dois seres, fiando o destino de duas vidas?
   O que é o selo que identifica a renovação de uma vida?
   O que é o pôr do sol, a noite de luar, o cancionista melodiando sua inspiração?
   Ah! O que é o recheio da vida senão o amor?                                                                                                                                       
  Avesso


No nosso caminhar o tempo e trajetar a vida, encontramos pessoas que passam, outras que vão e outras que ficam. Muitas andam na mesma direção, mas poucas no mesmo sentido. Algumas até tentam o lado a lado, mas por falta de obstinação e na ânsia de antecipar o futuro, ficam a degustar o instantâneo enquanto roem a vida.
Nesse processo de escalar o tempo e “alcançar” o que a vida tem a oferecer, os cruzamentos prescritos nos jogam no peito pessoas que por vezes nos arrastam pelos encantos que parecem ter; e alheios à dor que podemos sentir, esses prescritos mostram que o calendário da convivência faz cair o véu e revelar o que por trás dele parecia puro e perfeito; e depois de dissolver o fascínio e  desnudar o belo, faz este mostrar seu avesso e expor o que nos tira o sorriso; e ainda, como castigo, nos força crescer e, com o coração ferido, entender que, se as expressões dos nossos sentimentos não conseguiram fiar o vínculo naquele que de nós se desgarrou é porque a vida nos destina, ainda, a outro caminhar...
    
                                                                                                                                     CRUZADOS


Pensar em se libertar do que o destino em silêncio nos traçou, é inocente e  em vão. Relutâncias há, mas escorrem do domínio das mãos. Absorver esta percepção é necessário para não se deixar esvaírem os pontos ingredientes da porção; pois a vida é uma maratona e a estrada é percorrida por etapas; cumpri-las e chegar ao topo, dispensa tempo para a rejeição. Assim, não vale a pena retardar o cruzar dos pontos de interseção, mas sim, trilhar pela trajetória demarcada e colher o que já se alcança, pela prescrição.

                                                                                                                                   
          DESFOLHAR                                         

       Há intervalos na vida em que fantasias e encantos são desnudados à medida que o amadurecer, vai enxergando o avesso das perspectivas mais almejadas. O que parecia tocável, com o desfolhar do tempo é distanciado ou esvaído do nosso alcance.
 Há entrefolhas impiedosos e alheios à nossa condição humana; ignoram nossos limites e, impondo novo reinício, sem entremeios para estágios e simulações, nos levam a identificar a saída, ainda embaçada pelo véu da incerteza e o abstrato da insegurança.
 Feliz é aquele que consegue adestrar seus dias e, na fluidez do tempo, reconstituir-se e sentir conforto, desfolhando o diário do início e fim de histórias e criaturas.


                                                                                                                            
   DE QUE VALE...?


     Que satisfação tem o pássaro de belo canto, se não atrai a fêmea que está no cio? Seria esta a razão do canto triste do uirapuru?
Que satisfação tem a cachoeira, se não atrai o olhar daquele a quem está a respingar?      
Que satisfação tem a frondosa árvore, se seu sombrear não areja a quem está a fadigar?
Que satisfação tem a mais alta montanha, se lá do topo, seu olhar é solitário?
Que satisfação tem a boa música, se não comove quem a inspirou?
Que satisfação tem a flor, se antes de murchar, não atrai um polinizador?
Que satisfação tem a bela mulher, se, com seus apetrechos, não consegue canalizar a admiração e o desejo daquele a quem pretende imanizar?
Que satisfação tem o tempo, se o pular das horas não impulsiona nem vincula ninguém ao verbo amar?
Que satisfação tem aquele que, ao se recolher no seu ninho, não tem a quem se aconchegar?
Que satisfação tem aquele que, ao ter por perto o que lhe acende a chama, é coibido sorver o que lhe inflama?
Que satisfação tem aquela que, na seqüência do “estradão”, inaugura o romper do “véu” sem fiar a pureza do sentimento recíproco?         
Que satisfação tem o poeta, se sua flecha não crava a maçã almejada, nem sua saliva prova o sabor da sua imaginação?
Que satisfação tem  aquele que flui a letra e o canto, quase sacro, se não frui da relíquia que o inspirou a compor a canção?


                                                                                                             
      Renascer... 

  Estou indo, aonde ainda não sei, mas espero descobrir num fechar e abrir de olhos. Nem sei também o que será pior, se largar o fardo ou ir rumo ao desconhecido. Certo é que, lamentar não devo. É que, fora algumas boas companhias, todos os demais petrechos que a peleja me proporcionou, não valeu por um só dos reincidentes coices que a vida me deflagrou.  espero que a próxima fase seja algo sem tombos e machucões, nem períodos desoladores. O que temo, se vier renascer é: para que lado o Senhor da ressurreição me puxará?

 Sobre a fase já terminada, digo-lhes que tentei viver tudo que a vida não me permitiu, mas vivi quase tudo que não queria viver. Com as proporções a mim concedidas jamais completaria um todo, por minúsculo que fosse. Condensar um fio de fé capaz de minar córrego e arejar densas esperanças, foi o que mais busquei em oração e conversa a dois, em vão... e a promessa de sondar o coração, não me pareceu cumprida. Sonhei com horizontes coloridos, mas recebi o papel dos reprimidos.  Nasci para viver... sem saber, recebi as regras do recolher-se e, quase morrendo, tive que ser aprendiz. O que ainda me contenta é outra promessa, que diz ser vitorioso todo aquele que perseverar até o fim.

      Diante do instante sem opção, parto para o incerto com a certeza de que, lá também não terei direito de escolha, apenas aguardar a pronúncia do dito final.   

                                                                                                            
 Recantos

 Se a vida me dissesse que é generosa, eu lhe diria que não é humana. Que é ferrenha na forma de distribuir a destinação dos seus residentes. Determina a multiplicação dos seres para sua tirânica satisfação; destina seres inocentes e indefesos aos recantos mais indesejáveis e lhes impõe limitações; coage-os a margens onde só os roedores se sentem bem. Trata-os como refugo de um produto que passa por uma classificação e o resto é jogado à putrefação. São repugnantes os argumentos de que eles serão exaltados na “reciclagem” da renovação. É sem sentido expor um ser amado ao sofrimento e depois de esfacelá-lo se fazer seu salvador. De que precisa ser ele perdoado? Ora, se aos ecos de dor não merecem dar ouvidos, que sentido tem o cálice da cruciação? Que utilidade tem o remédio se é dado quando não há mais dor?  
                                                                                   

Amar tem limites

Você seria capaz de amar, incondicionalmente?
Se sua forma de amar é se doar de forma exclusiva a alguém que sequer avalia teus sentimentos, é bom parar, refletir, e tentar aprender com quem criou e com quem entregou a vida por amor. Ele vai te ensinar que quem ama é ciumento e exigente: (“... Não se proste diante de outro deus, porque Javé é ciumento: ele é um Deus ciumento. ...”, Ex 34:14 ...) e não abre mão da fidelidade; reclamações então... nem murmúrios!  (Nm 21:4-6); exige glória, mesmo quando parece estar dando migalhas. É como se o ar e os poucos grãos, já fossem o bastante. Mesmo amando muito seus filhos, quando estes, em sofrimentos, lhe pedem para aliviar suas dores, Ele não se joga, na pressa do livramento. Foi assim em todo o Êxodo. Quando Paulo, sob espancamentos, lhe pediu por três vezes para que o livrasse do que ele chamou de espinho na carne, quem mais o amava disse: “Para você basta a minha graça” (2 Co 12:9...). Isso mostra que, amar não é isentar o outro de retribuição. Se a quem ama cabe dar amor, a quem é amado cabe mostrar que merece o amor recebido. Se o amor fosse algo incondicional, Deus não teria feito cair o anjo rebelde com sua corja. O apanhar e oferecer a outra face é apenas, para quando for necessário fazer refletir e surpreender o agressor.
O Filho, quando veio nos visitar, trouxe as regras da justiça e da harmonia para a boa convivência, e com o segundo mandamento, ensinou a amar, mas não deixou de alertar que, primeiro deve ter amor próprio: “ame ao seu próximo como a si mesmo” (Mt 22:37-40); ensinando assim que, quem se ama, não pode amar qualquer coisa, nem de qualquer jeito. Portanto, ame à medida que for amado(a) e doe-se à medida que receber. Com certeza, irá descobrir que apesar de tudo, mesmo entre espinhos, a vida tem favos ainda com mel, para vigorar teu corpo e alma, e te ensinar as várias formas de conjugar o verbo amar.
Amar não é se dissolver para matar a sede do que chega com o: “ô de casa!” e vai-se deixando rastros indesejáveis.

A versão original do amor é outra, é condicional e depende do SE: “... Purifiquem-se... Então venham e discutiremos. Ainda que seus pecados sejam vermelhos como púrpuras, ... SEEE vocês estiverem dispostos a obedecer, comerão os frutos da terra; mas, SE vocês recusam e se revoltam, serão devorados pela espada.” (Is 1:16 ...).
Fora do SE, são adereços e variações acrescidas para favorecer a instintos que só aprenderam manipular. 

                   
 Reviver

Quando a vida me faz cair e arrasta-me por veredas indesejáveis, e sinto estar sendo consumido pelo vácuo do peito, sou levado a me recolher, e este recolhimento aponta-me o teu colo, no qual, choro baixinho aos ouvidos do teu coração, quando os cochichos deste, acalentando-me,  me recompõem e me fazem ver que as quedas, são apenas rascunhos de uma página que juntos, passando a limpo, iremos escrever. 
                                                                                                                                                

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